terça-feira, maio 29, 2007

Follow the yellow-brick road


Num momento de lucidez como outro qualquer, não como uma distorção da realidade, mas como uma nova forma de percepção, visualizo a realidade de maneira diferente. O fluxo temporal é reduzido a uma ilusão humana, a uma conexão com uma formalidade cronológica. A continuidade, elemento solidificador da quarta dimensão, deixa de fazer sentido a partir do momento em que se considera possível a sua desconstrução. Dezasseis a vinte e quatro imagens por segundo tornam-se suficientes para construir uma inteira realidade. A imagem e o som formam um desencadear linear, sem aparentes quebras que iludam a uma desmistificação sensorial. Perdida entre dois mundos, transpondo-me para uma nova realidade, a tela permanece numa imparável transcrição de acções. Pensado para mim, assumindo a minha posição como espectador, “Fará o Cinema de seus criadores Deuses?”. Se entendermos um filme como um inteiro cosmos que se completa a si mesmo, claro. Deuses criadores de um novo mundo, cingido por suas regras e valores. Nesse caso, que somos nós ,meros visionários de uma janela em devaneio estético? Exploradores de novas terras suponho, adentrando por novos horizontes de filme para filme. Inúmeras novas possibilidades nos esperam ao atravessar cada limiar para uma nova aventura, no entanto existe sempre um preço a cobrar. A entrada neste reinado necessita da nossa contribuição para prevalecer, de outra forma o mesmo irá ser destituído das suas muralhas, e mais tarde derrotado. Que seria de nós num mundo sem janelas? Para onde iriam Deuses e exploradores?
“Negros dias para nós prevejo” pensou o Rei num dia como outro qualquer olhando para o seu reino em declínio. “Dias de glória passaram, onde a ordem e o respeito perduravam. Tão fresco e ainda presente o dia em que a sétima e mais completa de todas as artes surgiu. Não tardou até homens de pala e papagaio no ombro se aproveitarem de nós, roubando e tirando partido de aquilo que não lhes pertence. Malditos!” Certo e sabido é que de bons modos, nem todos os Homens são feitos. Veja-se que a cobiça está presente em toda a História da humanidade, não há razão para haver excepção neste caso. O respeito, virtude de interesse comum em qualquer civilização, é deixada de lado assim que a ambição se apodera do indivíduo em questão. Sem ponderar consequências de certos actos, aparentemente tão insignificantes como embarcar num navio de caveira na bandeira, segui-mos a corrente de ilusória fortuna. Que nos espera em terra? Horizontes de bons costumes esquecidos talvez, onde a ferramenta da tecnologia se conjugou com o conformismo. Florestações em demasia, contornando o cuidado e a qualidade, abraçando a quantidade. Uma população conduzida por códigos de submissão a uma arte em decadência. Para trás ficaram tempos marcados por produções reduzidas... aí, a qualidade fazia finco à quantidade. Aí, era dado tributo e empenho à solidificação entre a narrativa e a estética, transparecendo para as janelas do nosso mundo um portal directo para a essência de novos sentimentos. Encalhados em terra de rochedos bicudos, novos Criadores surgem, trazendo consigo ansiedade, deixando para trás humildade. Dotados por falta de originalidade e incapacidade de formular obras consistentes, entregam-se à criação agora tão banal de uma obra cinematográfica.
Deste lado, o espectador mais exigente, consumido por insatisfação, pergunta-se a si mesmo “Será que o Cinema, arte de tamanha abrangência artística, já deu tudo aquilo que tinha a dar? Será que todos os recursos narrativos se esgotaram? Porque se perde tanto tempo com uma estética irrelevante e com códigos de carácter superficial?” Numa procura de respostas, o espectador encontra uma diversidade de factores a ter em conta. Colocando-se como mediador entre o mundo da criação e o mundo da projecção, depara-se com a máquina que torna matéria aquilo que outrora não passava de uma transcrição de acções... a Indústria do Cinema. Passando para o outro lado do arco-íris, percorrendo a estrada de tijolos amarelos, adentra-se num mundo onde cérebro, coração e bravura faltam. “Ao entrar numa sala de cinema...” pensou o espectador “... vislumbro a inteligência e perspicácia de um argumento, formando um circulo perfeito sobre si mesmo, deixando pontas soltas que unificam o público ao desenrolar do filme. Enlaço-me às personagens, aos seus feitios, comportamentos e a toda a sua complexidade dramática. Admiro a coragem cénica, a autenticidade estética, e a fluidez que compõe a obra... Porque sinto eu a ausência de alguns destes factores essenciais? Precisará a sétima arte de visitar o Feiticeiro de OZ?” Pois... Provavelmente sim... Uma Indústria como outra qualquer foi aquilo que o espectador encontrou, onde o dinheiro entra e sai ciclicamente de forma a manter o equilíbrio de uma arte comercial. “Maquinal” foi o que lhe pareceu este processo de produções anuais, algo forçoso, numa euforia constante de criação. Mas é claro que, para perpetuar a existência do Cinema, há que se fazer Cinema, independentemente da sua qualidade. “Desumano” também, pensou o espectador, “frio e destemido, de ideias fixas... mas de que outra maneira poderia esta máquina trabalhar? Para chegar a certos fins, certas medidas tem de que ser tomadas. Para isso servem os homens de gravata, caneta no bolso e papelada na mão... não? Para quebrar a barreira que separa o mundo da ilusão do mundo palpável, para tornar possível a transcrição da ficção na realidade, para espalhar uma obra por entre nós exploradores. São eles que tornam possível a nossa entrada no reinado, são eles que têm a chave de todas as portas, guardiões de horizontes por descobrir. Rudes e impenetráveis, assim devem ser.” À vista o barco, transportando consigo homens de pala no olho e papagaio no ombro, ameaça atravessar esta muralha que agora se tornou penetrável. Travando uma batalha contra a pirataria, a Indústria tenta manter erguida a sua fortaleza, no entanto precisa de nós exploradores para quebrar a madeira e afundar o casco... Ignorar os seus cativos, as suas ofertas enganosas, onde as consequências ultrapassam a pequena fortuna prometida. Permanecer em terra, deixar o barco penetrar a turbulência... talvez se perca, afunde e caia no esquecimento, quem sabe...
“Desumanos”, relembrando a palavra utilizada, devem ser os homens de gravata na sua dedicação a esta arte. Vendendo os produtos como meros objectos de fim mercantil, dotados de uma objectividade precisa, sem contacto empírico com o meio que os envolve. Sem eles, como sobreviveriam Criadores e suas respectivas obras? No entanto, a falta de coração que dota este hemisfério do Cinema de bravura, têm-se transformado numa massa preta de pessimismo, alastrando-se em direcção ao hemisfério oposto. Agora, onde leões sucedem, homens de lata falham e espantalhos rendem-se. A magnificência que perpetuava na mão de aqueles que se destacavam como autores, foi corroída por apatia e desapego. Perseguindo o coelho branco, adentrando-se pela toca, argumentistas temem por descobrir o quão profundo podem chegar. Ficando a meio caminho de uma boa construção narrativa, limitam-se a uma vaga compreensão de fracas concepções. Sem chegar a entrar no País das Maravilhas, apreendem-se a meio caminho, entre terra e raízes de uma obra sedenta por chegar à superfície. Refiro-me de forma generalizada à condicionante que domina o Cinema nos dias de hoje, porque é óbvio que continuam a surgir boas apostas cinematográficas. No entanto, preocupa-me a vasta quantidade de desalento entranhada na alma do hemisfério do sensível. Percorrendo todo o globo, de Norte a Sul, de Este a Oeste, desde a Europa à América uma vaga de incapacidade artística manifesta-se de diversas formas. Estou ciente de que sempre existiu um lado negro no Cinema, mas nos últimos anos tem-se alastrado pelos campos onde a modéstia e a distinção dominavam. Há que combater a apatia e explorar áreas inexploradas, só assim poderemos precaver os anos perigosos que se seguem para o Cinema.